Henrique Marques Samyn**
Notas
sobre a obra expressionista de Lívio Abramo.
Galo
Linóleo - 1942 - 17,8 x 12,6 cm |
Os olhares sobre a obra de
Lívio Abramo têm sido condicionados por uma espécie de
vício pelo ornamento. Toma-se como pressuposto a existência de
uma espécie de oposição que situa, de um lado, as gravuras
de Abramo, apologia do virtuosismo e do detalhe, explosão gráfica
de infinitas linhas, constelação de marcas; de outro, aquela
linguagem mais direta e lacônica, talvez até espartana, que encontramos
na obra de artistas como Goeldi, por exemplo. Esta visão peca por sua
superficialidade, ou seja, por não penetrar naquelas camadas mais profundas
que abrem espaço para que efetivamente se compreenda o sentido de uma
obra. Acaba-se por olhar para a gravura de Abramo apenas por uma admiração
técnica, por um desejo de devaneio: os olhos, percorrendo a multiplicidade
de traços, perdem-se naquele labirinto de formas
mas é
preciso trazer algo à lembrança: a certeza de que Abramo não
é só o ornamento, e que o detalhe raramente basta para explicar
o todo. O que pretendo fazer, neste ensaio, é apresentar uma interpretação
acerca da obra gráfica de Abramo em uma de suas mais significativas
fases, comumente referida como realista-expressionista.
A
obra de Lívio Abramo não se esgota na superfície; e isso
é ainda mais verdadeiro neste período, porque particularmente
motivado por uma dimensão existencial levada a pontos extremos. Sabemos
que, no século XX, a tendência artística que encarou de
modo mais radical esta proposta foi, sem dúvida, o Expressionismo alemão.
O pathos expressionista, decerto, não permaneceu sempre o mesmo: se
emergiu como um ímpeto espiritual disposto a reconstruir a arte com
as próprias mãos, as negras nuvens da guerra tornaram-no sombrio;
no entanto, simultaneamente intensificaram o que nele havia de desesperado
e trágico - porque essencialmente humano. E este ato de assumir-se
como humano sem quaisquer concessões, tão característico
do Expressionismo, foi algo que Lívio Abramo não recusou. No
universo da produção gráfica brasileira, sua produção
está certamente entre as que trazem maior pessoalidade; como afirmou
Mário Pedrosa, há ali uma identificação profunda
entre arte e artista. Daí a sempre franca presença das vivências:
a vida no Paraguai, a descoberta da antropofagia, a saga operária
no entanto, aqui surge uma interrogação: será que, assim
como há tão nítida relação entre as tensas
linhas de Pollock e sua conturbada vida, ou entre o equilíbrio das
linhas de Mondrian e seu temperamento, também em Abramo encontramos
uma relação deste tipo? Se fizermos uma curta análise
formal sobre as obras deste período realista-expressionista, observamos
duas características no tocante às linhas: primeiro, que são
sempre muito vigorosas, até mesmo agressivas, por vezes cortando a
gravura quase que de uma ponta a outra; segundo que, multiplicadas, elas criam
texturas, áreas de cinza que tecem como que espaços de intersecção
entre as figuras, mesclando seus limites. Aliás, chama a atenção
o fato de que a relação figura-fundo aqui nem sempre é
muito nítida: as figuras humanas muitas vezes estão como que
dissolvidas no espaço, sendo atravessadas por aquilo que as cerca.
Podemos
dizer, para usar a expressão de Fayga Ostrower, que a "intensa
força dramática"; das gravuras de Lívio Abramo permeia
todo o espaço da representação: é ela que tece
estas imagens, confundindo os limites, fragmentando o real representado. E
qual é seu lugar de emergência? O próprio espírito
humano. Tomemos, por exemplo, uma gravura como Espanha 1938. No centro, temos
uma mulher ajoelhada diante de uma criança inerte; a imagem que primeiro
vem à mente é a de uma mãe diante do filho morto. Ao
seu redor, vemos um espaço indefinido, rasgado por traços fortes
e carregados de um intenso teor dramático. A mãe leva sua mão
à cabeça - um gesto de desespero diante do filho morto. Diante
desta tão violenta e insuportável visão, seu mundo despedaça,
tomba em ruínas. Não há mais realidade; tudo o que resta
é essa dor lancinante, que tudo domina e destrói - "E o
inferno em tudo, e por tudo o abismo", como escreveu nosso poeta Alphonsus
de Guimaraens.
Operário
Xilogravura - 1935 - 18,5 x 18 cm |
Mas
será este um caso isolado em que a linha, o talho, identifica-se com
um estado da subjetividade? Se olharmos para as outras gravuras do período
expressionista, veremos que esta identificação é, na
verdade, uma regra. O que não é de espantar, se pensarmos na
já mencionada relação tão íntima entre
arte e artista, fortemente presente na obra de Lívio Abramo. Que solo
poderia ser mais fértil para o florescimento desta intimidade, senão
o expressionista? Homem de esquerda, Abramo pôde, neste terreno, levar
para a criação artística sua afiliação
à luta operária. A dramaticidade encontra, portanto, sua potencialidade
máxima: não é apenas a subjetividade do representado
que se faz presente na gravura, mas a própria subjetividade do criador;
não em um sentido banal, em que toda obra nasce de uma criação
subjetiva; mas no sentido de que a obra é a representação
da própria consciência do criador, de forma intencional, no ponto
em que é mais intensa. No caso de Abramo, uma consciência revolucionária.
Há
uma xilogravura, sem título ou data, no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, que representa arquetipicamente do que quero dizer. Trata-se da representação
de uma figura humana: um homem dominado pela emotividade, a um ponto quase
brutal, segurando um punhal, avançando em direção ao
infinito. O espaço ao redor é indistinguível: linhas,
campos e texturas que se cruzam e se atravessam; entre as pernas do homem,
que aliás sugerem um movimento trôpego, irracional, há
como que fragmentos de espaço; é possível perceber que
há lascas de madeira que foram como que arrancadas da matriz. Como
compreender esta gravura? Parece hermética, difícil, ininteligível.
Não há título ou data; não sabemos de que se trata,
onde se localiza. Só o que há é aquele homem que avança,
ferozmente, em direção ao que parece ser lugar nenhum. Minha
interpretação, no entanto, é que esta é a mais
importante gravura expressionista de Abramo, porque é a própria
representação da consciência revolucionária que
citei agora há pouco. No entanto, antes de apresentar esta interpretação,
preciso levantar alguns elementos.
Em
primeiro lugar, que quer dizer essa expressão, consciência revolucionária?
Um filósofo alemão do início do século XX, Ernst
Bloch, falava em uma "consciência antecipadora": a capacidade
de o homem ultrapassar a passividade da vida cotidiana, o conformismo do dia-a-dia,
e despertar para um desejo capaz de movê-lo para novas conquistas; em
outras palavras, a capacidade de o homem nascer para a construção
de um futuro. Mas, como notava Bloch, o nascimento deste ímpeto implica
em uma ruptura com a realidade, na adoção de uma postura crítica
com relação a esta, na percepção de que é
possível atingir algo melhor. Desta forma, a possibilidade de construção
de uma nova realidade passa, em primeiro lugar, por uma desconstrução
da realidade na qual se habita. Será que não podemos pensar
nisso como sendo resolvido formalmente, na gravura de Lívio Abramo,
por meio da desconstrução espacial, representada pela abstração
que atravessa a imagem? Se seguirmos este raciocínio, chegaremos à
imagem de um homem que corre por um mundo em pedaços; podemos vê-lo,
distinguir seus braços e suas pernas; mas o mundo ao seu redor está
fragmentado a ponto de apresentar-se como totalmente incompreensível.
E esta fragmentação, como no caso da outra gravura que analisei,
também aponta para uma origem única: a subjetividade da figura
representada. Observemos os traços que irrompem de seus olhos, as linhas
que identificam os movimentos de seus braços furiosos. O que nos leva
à conclusão: se o mundo deste homem está destruído,
isto se dá por ação de seu próprio espírito,
que não mais vê sentido nesta realidade que agora habita.
E
é a partir daí que penso podermos falar em uma consciência
revolucionária. Porque, como certa vez observou Albert Camus, a mente
do revoltado, deste homem que diz "não" a um mundo que não
mais considera aceitável, apóia-se sobre uma certeza confusa.
Só o que nela há de certo é o direito que este homem
afirma possuir e que julga haver sido violado, algo que Camus definiu como
uma adesão do homem a si mesmo, de tal modo intensa que o leva a jogar-se
contra todos os perigos para defendê-la. Então é uma questão
de tudo ou nada: citando Camus, "o homem revoltado quer ser tudo, identificar-se
totalmente com esse bem do qual subitamente tomou consciência, e que
deseja ver, em sua pessoa, reconhecido e saudado - ou nada, quer dizer, ver-se
definitivamente derrotado pela força que o domina". Não
há um meio termo, tampouco há concessões: o que há
aqui é uma luta entre o homem e o mundo inteiro, um combate do qual
apenas um pode sair vitorioso.
Desta
forma, o que há nesta gravura é a representação
desta consciência revolucionária: a subjetividade que atira-se
contra o real, que o despedaça, que abre entre si mesma e o mundo um
abismo. O revoltado só conhece uma ordem: a justiça que impõe
à realidade. Se não há esta identificação,
o mundo perde o sentido - o que é resolvido, na gravura de Abramo,
por este rompimento do espaço, transformado em ruínas.
Lívio Abramo, ele mesmo um homem revoltado, já havia experienciado
esta consciência revolucionária que representava. Aquela gravura
é, nesta medida, um espaço de convergência: à subjetividade
da figura gravada equivale o espírito do gravador, Abramo. O que ele
fez foi realizar, na matriz, o combate que habitava seu próprio espírito.
Quem sabe não seja possível afirmar, a partir daí, que
o lugar para onde aquele homem revoltado corria, tão furiosamente,
era para fora da gravura - ou seja, para a própria vida
a vida
revolucionária do artista que o representava; a vida revolucionária
de Lívio Abramo?
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*Originalmente publicado
em Tribuna Impressa (19/07/03), como Uma consciência revolucionária:
Notas sobre a obra expressionista de Lívio Abramo. Publicado sob autorização
do autor.
**Henrique
Marques Samyn - ensaísta, é Mestre em Filosofia da Arte pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Psicologia Social
pela mesma instituição.
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