A OBRA DE ARTE NA INTERNET:
UMA DISCUSSÃO SOBRE A TÉCNICA E O PENSAMENTO*

Reinaldo Cardenuto Filho**

        Nunca foi tão simples consumir arte. Se antes a reprodução já estava ocorrendo de um modo desenfreado, com o surgimento da internet, esta se tornou ininterrupta. Com um computador, um modem, uma linha telefônica e boa vontade, uma pessoa navegando pela teia mundial pode em minutos conhecer algumas esculturas de Rodin e obras de Leonardo da Vinci ou Bloch.
        Certamente que, com essa nova tecnologia cada vez mais presente no cotidiano mundial, a percepção e modo de criação se alteraram bruscamente. A não necessidade de deslocamento geográfico, a possibilidade de armazenar e modificar uma pintura e a interatividade simultânea com milhares de artistas diferentes são alguns exemplos que tiveram conseqüências para a discussão acerca da mutação da obra de arte.
Mas, na internet, existem dois níveis bem distintos sobre a questão da arte que devemos analisar neste trabalho: um é o meio eletrônico servindo de suporte para os museus modernos ou contemporâneos, e o outro é a utilização desta nova mídia para a produção artística.
        Um trabalho que ilustra bem o que acontece no primeiro caso é a tese de mestrado de Patrícia Yamamoto, "Os museus de arte moderna e contemporânea na www: novas formas de aplicação do acesso intelectual". Neste trabalho, a autora expõe a problemática, analisando como a percepção dos espectadores se modificou com a introdução da internet como complemento aos museus.
        Segundo Patrícia, as mudanças se originam de diversos fatores: não há mais a necessidade de se deslocar (acervos inteiros são colocados em sites possibilitando assim que os internautas entrem em contato com as mais diversas obras: são as visitas virtuais); os modos de comunicação do museu com o público são modificados (agora é possível receber e-mails com programações, eventos); a disponibilidade de dados é maior e mais simples que no espaço físico; há a possibilidade da criação de fóruns ou grupos de discussão onde cada pessoa interage na tentativa de mostrar os significados introspectivos das obras de artes; as compras de publicações on line e questionários ou formulários onde o espectador pode ou não deixar seus dados pessoais, interpretações, gostos e etc.
        É inegável que, dada a história do museu contemporâneo e moderno, que tem uma tradição cujo objetivo é a cultura e a atração cada vez maior do público, a internet sem dúvida se constitui como um veículo de comunicação circunstancialmente deveras importante.
        Porém, uma primeira questão que se apresenta é quanto uma comparação entre a obra de arte no museu e na internet. Escreveu John Berger em seu livro "Modos de ver" que a aura não desapareceu por completo após a queda da arte como contemplação. Na verdade, para o autor, ir ao museu é um meio de contemplação, já que, mesmo as artes modernas são expostas de um modo a estabeleceram um contato transcendente com o público. Um exemplo são as famosas redomas de vidro, que separam um mundo de outro.
        Sendo assim, na era da pós-modernidade, a contemplação vive junto com a reprodução maciça. A internet, entretanto, vem inaugurar mais um aspecto nesta discussão: a desestruturação do museu como um espaço destinado à transcendência. As visitas virtuais são uma maneira de tornar possível conhecer obras de arte através de sua casa, sem locomoção. Quando se acessa qualquer site de qualquer museu do mundo e se depara com um Dalí, por exemplo, o internauta pode simplesmente correr seu dedo pelo monitor do computador interagindo com a obra a um nível até então desconhecido dentro da tradição museológica (isso já acontecia em publicação escritas encontradas em bancas de jornais ou em livros, mas nunca como um objetivo dos museus contemporâneos), com exceção daquelas exposições pós-modernas que, infelizmente, não são ainda possíveis de serem assimiladas virtualmente.
        Outros pontos a serem levantados sobre a discussão dos museus na Internet são: a maior interatividade do público e a possibilidade de salvar as imagens, os simulacros das artes nos computadores.
A maior interatividade também é um aspecto que reduz a transcendência em relação ao museu. A carga de informações sobre os significados das pinturas e esculturas, por exemplo, descarta diretamente pensá-las como dotadas de um espírito contemplativo. As informações são humanas, são movimentos históricos. O público percebe que estas foram criadas pelo homem para o homem, e não por um Deus imaginário.
        Já a possibilidade de salvar os simulacros em computadores criam a possibilidade real de modificação. Programas de computadores como o Photoshop ou o Fireworks são alguns que tem o objetivo de modificar imagens. Qualquer pessoa que tenha conhecimento sobre qualquer um deles pode, atualmente, denegrir mais ainda o restante da aura existente.
Mas não devemos esquecer que a internet, mesmo que ainda não disseminada para a população em geral, traz a possibilidade real de uma democratização da área cultural. Um exemplo pessoal é válido: enquanto navegava pela internet durante a semana que de preparação deste trabalho, me deparei com obras de Rodin, Dalí, Pollock, entre outros. Em algumas horas de pesquisa sabia minimamente algo mais sobre eles. Logicamente, a possibilidade de informações errôneas é real. Basta então ao público aprender através de sites confiáveis. Como os dos museus, por exemplo.
        Há, porém, um outro aspecto da obra de arte na internet que deve ser apresentado e discutido: o fazer. As novas técnicas estão possibilitando que surjam artistas ainda não reconhecidos. A arte realmente abstrata, que é pura matemática, que não possui corpo, surge como nova percepção do mundo, como exercício do espírito além da preocupação estética.
        Esse novos artistas, de acordo com o texto "Os exercícios do espírito" de Jean-Michel Rey acerca de teorias valeryanas, são filósofos. Eles estão mais preocupados com a busca, com as curiosidades do espírito, com o entendimento do mundo que os cerca. Não separam a compreensão do criar. A técnica, fundamental em seus trabalhos, não se funde com a estética, mas sim com a compreensão.
        É assim que é possível na internet, encontrar sites alternativos, de grandes artistas que não têm reconhecimento porque aos olhos dos conservadores a rede mundial de computadores é como o diabo que vem se apoderar do espírito e da beleza das obras de arte.
        O site www.jodi.org é um exemplo perfeito para ilustrar este aspecto. O criador ou criadores - não há preocupação com a identificação da autoria - quiseram expor dois sentimentos diferentes sobre o mundo que os cerca. Primeiramente, com imagens aparentemente intragáveis, tentaram se aproximar da imagem computadorizada em seu nível inteligível: a forma matemática. Conseguiram? Não, logicamente. É impossível tornar concreto para os olhos a pura matemática, todavia, a maestria foi a criação de simulacros tão próximos da matemática que faz com que o público reflita sobre esta questão.
        Em segundo lugar, a percepção do mundo que quiseram criar foi a de que na internet há tantas informações inúteis que o espectador-leitor fica perdido. Neste site não há sequer a palavra escrita. Não há uma ordem pré-estabelecida, sendo que é muito fácil se desorientar. É como uma reordenação ou a presença do caos. Os que participam desta experiência muitas vezes tem que abandonar o site para voltar a "realidade".
        Todos os aspectos discutidos neste trabalho são ilustrativos de uma nova tecnologia que está ainda surgindo e conversa diretamente com os níveis perceptivos, técnicos e teóricos da arte. Enquanto hoje este tipo de arte é pensada como periférica, acredito que daqui há alguns anos, os conservadores vão perceber seu real e importante significado. Ora, o cinema em seus primórdios não era visto como uma arte denegridora?

Bibliografia:

- Berger, John, "Modos de Ver" - Arte e Comunicação - Edições 70.

- Lebrun, Gèrard, "A mutação da obra de arte" in. Arte e filofosia - Arte Brasileira Contemporânea - Caderno de Textos 4 - Funarte/Instituto Nacional de Artes Plásticas

- Rey, Jean-Michel, "Valery - os exercícios do espírito" in. Artepensamento - Org. Adauti Novaes - Companhia das Letras

- Yamamoto, Patrícia, "Os museus de arte moderna e contemporânea na www: novas formas de ampliação do acesso intelectual" - Dissertação apresentada a Escola de Comunicações e Artes como exigência parcial para obtenção do título de mestre em Ciências da Informação - Orientação: Prof. Dr. Martin Grossmann

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*Publicado originalmente na Revista Vórtice - http://www.revistavortice.hpg.ig.com.br/. Escrito há alguns anos, na época em que cursava o terceiro ano do curso de Jornalismo na PUC-São Paulo.

**Reinaldo Cardenuto Filho - É jornalista, estudante de ciências sociais, pesquisador e programador de cinema do Centro Cultural São Paulo.