O OLHO DE PAULO CHEIDA SANS

Márcio Zago e Euclides Sandoval*

        Paulo de Tarso Cheida Sans é um cidadão profundamente engajado no em questões sociais, voltado para valores que dignificam o humano. Além de gravador e professor universitário na PUC de Campinas, é pintor e escultor, escritor, editor e curador, com vasto currículo de exposições no Brasil e exterior, cerca de quatrocentas, a ponto de ser eleito o Homem do Ano - 1999, pela American Biographical Institute (ABI).
        Obteve vários prêmios, participa dos principais acervos do país e do exterior. Sobre a gravura de Paulo Cheida, o crítico José Roberto Teixeira Leite refere-se ao que há de típico e pessoal em sua produção "caracterizada desde o início, quando surgiram os primeiros engravatados, pela intenção satírica e mordaz". Ironia é humor contextualizado. Irreverência pode humanizar. Paulo diria, talvez, que se não pudesse mudar o mundo, criaria um museu. E um museu vivo, não só depositário de obras.
        É um homem que acredita em passos programados, desde os mais modestos até os mais ousados, para se chegar a um alvo distante e ambicioso - o Museu Olho Latino, como extensão do Núcleo de Arte Contemporânea Olho Latino que criou há cerca de cinco anos.
        O Museu já conta com mais de mil obras, e já realizou várias mostras internacionais e algumas bienais de gravura. Só não possui espaço próprio (ainda), como se imagina no caso de uma instituição dessas.
Paulo tem amigos espalhados pelo mundo, e vive cercado por alunos e ex-alunos dos cursos de Pintura, Plástica e Gravura do Curso de Artes Visuais, e de Pós - Graduação, além dos muitos artistas que descobriu e valoriza, membros do Núcleo de
Arte Contemporânea Olho Latino, e outros que ele costuma convidar para as mostras.
        Paulo e sua mulher Celina Carvalho, artista plástica, dividem entre si a organização e promoção do Núcleo e do Museu.
        A entrevista aconteceu em sua casa, em Campinas, no mês de julho de 2003, durante toda uma tarde, sem que Márcio e eu déssemos conta do tempo passado. Foram mais de três horas gravadas, cerca de trinta páginas, captadas das fitas e digitadas pela Maitê S. de Souza.
        Paulo prefere contar a discutir e, para quem é tão substantivo - substantivo e verbo resumem tudo -, não se perde tempo ouvindo quem dispensa adjetivos.

Paulo Cheida Sans
A Borboleta e os Confetes
Linogravura
49,5 x 80,5 cm - 1996

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Zago: Sempre acontece de artistas receberem influências de outros artistas. Como aconteceu em seu caso?
Paulo: Minha mãe, como gostava de arte, desenhava muito bem e também fazia poesia. Ela tinha sensibilidade e me incentivava porque achava que meus desenhos eram avançados para a minha idade.

Sandoval: O primeiro desenho com quantos anos, se você lembra...
Paulo: Foi na fase dos seis anos, porque ficou documentado em jornal. Eu fazia desenhos e minha mãe levava lá para o suplemento infantil do Diário do Povo, de Campinas. Eram publicados quase todos os domingos. Para publicar o desenho, não se podia desenhar só a lápis, era preciso fazer com nanquim tinta. Foi aí que eu comecei a desenhar com aquela pena mosquito e nanquim.

Sandoval: Onde você nasceu?
Paulo: Em Campinas.

Zago: Você era desses moleques que desenhava o tempo todo?
Paulo: O desenho era direto, tem um pouco a ver com o meu modo de ser. Eu era quieto quando criança, desenhava muito. Muitas vezes, até preferia ficar desenhando a sair com os colegas... Então, surgiu a oportunidade de minha mãe me levar para uma pessoa especializada. Foi quando fiz um curso de artes no Conservatório Carlos Gomes em 1964. Neste mesmo ano, participei de uma mostra coletiva no hall do Teatro Municipal, expondo juntamente com os colegas do Conservatório. Esta foi a primeira exposição de que participei da qual tenho lembrança. A diretora Léa Ziggiatti me deu uma bolsa de estudos, porque gostava do meu trabalho, e me colocou no teatro. Então fiz um teatrinho infantil, Gifredo: O Anjinho das Reformas. Essa peça percorreu o interior do Estado de São Paulo e foi apresentada na extinta TV Excelsior. Uma das atrizes principais teve problema e se afastou. Aí a Regina Duarte, que estava iniciando a carreira, assumiu o papel. Ela é daqui. Eu trabalhava no Gifredo, mas não tinha intenção de continuar no teatro.

Sandoval: Você tinha quantos anos?
Paulo: Eu tinha nove anos, era o menino da peça. Depois dessa peça, em 1965, fui aluno do Egas Francisco. Lembro que, na época, ele mandou meu desenho para uma exposição no Rio de Janeiro. Então, ainda criança, eu estava sendo amparado pela cultura da cidade. Minha mãe levou-me para conhecer o Museu de Arte Contemporânea de Campinas, inaugurado há pouco tempo, e lá tive a oportunidade de conhecer Clodomiro Lucas, outro artista da cidade que me orientou sobre materiais. Aí comecei a fazer desenhos em grandes formatos e a participar de salões. O primeiro foi o 1º Salão de Arte Moderna da Juventude, realizado no MACC, em 1966. Depois, fiz um curso de história da arte com o artista Geraldo de Souza. Conheci o artista Francisco Biojone, que era professor de artes de meu irmão Flávio. Com a troca de informações com esses artistas, recebi importantes dicas profissionais. Recebi "Medalha de Ouro" no Salão Estudantil do Colégio Progresso de Campinas. Aos 13 anos iniciei as participações em salões oficias. Participei do I Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, em 1968. Daí em diante, foi um ritmo só, de intensa participação. Aos 15 anos recebi o Prêmio Aquisição no Salão de Piracicaba, expus no III Salão Paulista de Arte Contemporânea realizado no MASP, com importantes nomes, dentre os quais estavam: Cláudio Tozzi, Maurício Nogueira Lima, Lothar Charoux e Rubens Ianelli. Fui o mais jovem a ser selecionando na I Bienal de Artes Visuais de Santos, em 1971. A primeira mostra no exterior foi a Imagens e Mensagens da América Latina exposta na Galeria Le Colisée, em Paris, em 1976.

Sandoval: Houve alguma imagem que se repetia? Você lembra alguma coisa que, de repente, fica emblemática, como a gravata, atualmente?
Paulo: Nos meus desenhos havia muitos detalhes. Tinha a figura principal que delineava com lápis, e, depois, tudo era feito diretamente no nanquim. Então, nessa época, não havia preocupação com o que eu ia desenhar, a intuição se juntava à vontade, o que tem a ver com a espontaneidade infantil, sem bloqueios. Na época da adolescência, início de carreira mesmo, apareciam umas gravatas. Sem muita intenção, sempre surgia alguém com gravata. Eis o que aconteceu: olhando para os meus trabalhos, na busca de um novo tema, eu vi que a gravata era uma constante. Daí a gravata começou a aparecer de propósito. Gravatas pela beleza delas mesmas, enfeitadas, uma se entrelaçando na outra, como se estivessem dançando. Depois, os ternos eram montanhas com gramado; as gravatas, caminhos por onde as pessoas e figuras extravagantes andavam. Mais tarde houve um desenho que eu chamava de número 39, meu número de sapato. O homenzinho, dentro do sapato, jogava gravatas para as pessoas embaixo, voando, como se fosse um Papai Noel em seu trenó. Estava protegido por um guarda chuva e conduzia o "mundo" com uma varinha de maestro. Parecia estar ofertando algo importante para as pessoas, como se fosse uma espécie de "alimento". As gravatas deixavam de ser gravatas para simbolizar "algo" precioso. Havia essa temática, social, às vezes satirizando políticos, políticos anônimos. Nas instalações com gravatas eu enfoco isso. Eu me sinto bem em seguir esse caminho.

Paulo Cheida Sans
Sou?
Linogravura
57 x 44,5 cm - 2002

Sandoval: E como virou professor universitário?
Paulo: Ao entrar para a Universidade, fui sendo mais rigoroso comigo mesmo. Meti a cara na História da Arte. Passei a filtrar mais o que fazia antes, sem perder a espontaneidade. A intuição continuava a ser o abrangente. Na Universidade interessei-me muito pelo que diziam críticos e historiadores da arte. Acabei ficando na Universidade, como professor. Quando me formei fui convidado para dar aulas de escultura e depois assumi, com o tempo, outras disciplinas do curso de Educação Artística, a partir de 1979.

Sandoval: E como a experiência anterior o ajudou?... Penso na prática adquirida em exposições, o contato com artistas e mestres, toda aquela coisa informal.
Paulo: Eu já possuía, como artista, conhecimento do que acontecia, porque eu estava por dentro dos regulamentos dos salões, o nome dos jurados, críticos, jornalistas e dos artistas... Geralmente, a Universidade está voltada para o passado da História da Arte. O fato de meus conhecimentos terem muito a ver com o cotidiano, mais do que com a tradição, eu parecia distante de uma pessoa que queria ser artista. Acredito na importância de livros e teorias, mas não é bom manter-se afastado do que está mais próximo no espaço e no tempo. Aquilo que nos cerca constitui grande fonte de aprendizagem. A experiência em organização de mostras está valendo muito na minha carreira de professor até hoje. Na época em que comecei a trabalhar na Universidade, me envolvi com a organização de exposições dos alunos e Salões de Arte. Era uma coisa simples para mim. Divulgação em jornal, preparar convites, coisa comum, normal, imprescindível para qualquer mostra. Então, notei que promover eventos fazia parte do meu modo de ser como profissional.

Sandoval: Além de artista produtor, você gerava produtores.
Paulo: Procurava promover alguma coisa ainda não vista. Uma vocação. Hoje tenho maior consciência disso. Não ser só um artista realizador de obras. Na tela em branco você coloca um traço, põe a sua marca. Na área cultural é a mesma coisa. Há um vazio... Precisa de alguém que preencha uma lacuna. Eu sentia que era um professor diferente. Estimulava o aluno a expor, participando de mostras. Sinto que eles aprendiam muito mais sobre a realidade da arte no dia-a-dia. Percebia facilmente quem tinha talento e procurava estimular.

Sandoval: Como você conseguiu entrar em contato com artistas de várias partes do mundo?
Paulo: Quando organizei a I Bienal Internacional de Gravura, em 87, ela só foi possível porque eu já estava expondo diretamente no exterior, entende? Na época, eu recebia catálogos importantíssimos do Japão, da Espanha e de outros países, porque eu tinha contato, por correspondência, com instituições culturais e artistas do exterior. Convidei o Dimas Garcia, importante artista plástico de Campinas, para me ajudar a organizar a Bienal, na recepção e armazenamento das obras, eu, como mentor do projeto pelo Departamento de Artes Plásticas da PUCC, do qual era o coordenador, e o Dimas com essa parte da organização. Juntamos forças e nossas equipes. Como curador geral, esquematizei salas especiais com convidados diretos: Argentina, Portugal e Alemanha. Além disso, recebemos inscrições e de obras do mundo todo. A I Bienal aconteceu no MACC, sendo a mostra mais visitada na cidade até aquela data.

Zago: E a repercussão da Bienal, como foi?
Paulo: Levamos a Bienal para vários eventos. Serviu como pré-lançamento do I Festival Latino-Americano de Arte e Cultura de Brasília. Foi exposta na Universidade Federal de Vitória (ES) e no Congresso de Educação, em São José dos Campos. Aí foi indo... Várias exposições, eu rodando com elas. Teve início, então, meu papel de promotor de eventos internacionais. Eu era meio independente, nem sempre fazia a exposição para alguma instituição. Com isso, outras mostras aconteceram como a Brasil e Alemanha, no Instituto Goethe, em São Paulo. A minha credibilidade profissional com os artistas surgia de modo natural. Talvez por ser artista, antes de ser curador ou promotor, fazia diferença, pelo carinho que eu tinha em manter os artistas informados das mostras de que participavam. Enviava fotos, notícias de jornais e maiores detalhes, coisas com as quais, geralmente, os promotores de eventos não se preocupam. Isso gerou uma amizade profissional maior, a ponto de artistas interessarem-se por minhas gravuras e manter um intercâmbio comigo independentemente de vínculo institucional. As doações pessoais começaram a aparecer, às vezes em troca de uma gravura minha. Dessa forma meu acervo foi nascendo, não da Bienal em si, mas do contato individual com os artistas em mostras posteriores. O sucesso da Bienal foi tão grande que me convidaram para ser o curador da Mostra Latino-Americana de Gravura, lá em Brasília, em 1988. Nessa Mostra, a participação especial foi do Lívio Abramo. Ele enviou-me depois uma carta de agradecimento gostosa de ler, lá de Assunção, onde estava morando, elogiando meu trabalho como curador. Aquilo me sensibilizou.

Zago: Se a I Bienal teve tanto sucesso, por que não aconteceu a segunda?
Paulo: No que se refere à realização da II Bienal Internacional de Gravura em 1989, da forma como foi feita a I Bienal, parecia clara a dificuldade em repetir o evento. O Museu de Arte Contemporânea de Campinas, que expôs a I Bienal, e a Universidade, passavam por uma transição, mudanças internas... e assim não foi possível continuar realizando as edições seguintes daquela Bienal. Eu não podia deixar morrer o sonho de promover outras mostras de gravuras. Voltei a organizar as exposições internacionais a partir de 91, com esquema mais modesto, assumindo sozinho a curadoria, e o esquema organizacional contava com o auxílio da Celina, que me ajudava bastante e foi por isso que não desisti de continuar valorizando a gravura. Custeava toda a despesa, de modo geral, com cartas, fotos, convites, postagens, transporte das obras, molduras, etc. Organizava a mostra e oferecia para expô-la em instituições culturais. Assim foi acontecendo... organizei a Grabadores Latinoamericanos, em La Paz, em 1992, a Grabados & Brasil, representando a PUC-Campinas, durante o IV Encuentro Latinoamericano y Caribeño sobre Enseñanza Artística em Havana, Cuba, 1993, a Grabados & Gravuras, apresentada na Universidade Laval, em Quebec, Canadá, sendo que esta mostra recebeu o prêmio de melhor exposição do ano; isso, em 1998. Também realizei outras importantes mostras como convidado, assim como aconteceu com a Embaixada da Argentina que me convidou para ser o curador e realizar uma mostra da gravura daquele país, Grabados Argentinos Hoy, exposta na Casa da Cultura da América Latina, na Universidade de Brasília, em 1995. A exposição foi belíssima...

Zago: Todo esse contato com as gravuras de vários países... Como você se sentia?
Paulo: O trabalho que realizo como curador é de uma riqueza indescritível. Não teria aprendido o que sei se não fosse o contato direto com as gravuras. Percebia técnicas não comuns, temas e significados diversos que representavam o país de origem, e assim por diante. Isso resultou em uma significativa pesquisa que realizei, Xilogravura: Tradição e Contemporaneidade, trabalho de minha carreira docente pela PUCC. Ilustrando a pesquisa, fiz a curadoria da mostra Xilo & Print, com obras dos artistas pesquisados de vários países, no Museu de Arte Contemporânea de Campinas, 1994, e na Casa da Cultura da América Latina, da UnB, 1995.

Sandoval: Como nasceu a Revista Olho Latino?
Paulo: Organizei o livro Gravura: Contexto Atual, coletânea de autores de vários países, em 89. Eu mesmo fiz o livro, diagramando, grampeando, colando, separando página por página, 300 exemplares. O livro ficou esgotado na época. O intuito não era a venda, mas cobrir os custos e fazer a divulgação da gravura, em primeiro lugar; ali estava delineado um perfil de trabalho. Não era algo aleatório, pois havia ligação entre as coisas que eu fazia e o que pensava. Gostei, fiquei entusiasmado e continuei... Com a intenção de fazer uma publicação periódica, a fim de atender necessidades mais pertinentes ao meio universitário, contando com a participação de artistas, críticos e professores de alguns paises latinos, organizei um pequeno livro a que dei o nome Olho Latino, em 1990. A idéia era a de fazer uma revista latino-americana, mas as dificuldades da época fizeram-me realizá-la em formato de livro. Então, depois desta publicação, que não tinha nenhum interesse comercial, bastava a realização e divulgação do trabalho em si, recebi alguns comentários positivos de pessoas do meio artístico, dentre elas, por carta, as palavras de Ana Mae Barbosa, Maria Bonomi e de Paulo Klein foram muito animadoras. Percebendo a acolhida satisfatória da publicação e também por ter em mente a vontade de editar uma revista que atendesse às necessidades reais de quem participa do meio artístico, e que representasse a nossa realidade de fato, iniciei, então, a publicação da revista Olho Latino, modestamente. Consegui importantes entrevistas com Rudolf Arnheim e Gillo Dorfles, feitas com a colaboração do prof. Mexicano Félix Beltrán; saíram cinco números. Não dava para fazer a revista entrar no mercado procurando patrocínio, anunciantes. Esse tipo de coisa me incomodava muito. Por isso, ainda me empolgo em fazer publicação de pequena tiragem.

Zago: E como surgiu o Núcleo Olho Latino?
Paulo: Minha experiência na organização de mostras, levou-me a priorizar os países latinos, pois eu vejo que eles são sofredores, muito embora possuam tremenda potência criativa. Numa proporção menor, é como se eu pensasse assim: "puxa vida, no circuito brasileiro de artes só se fala em artistas de capitais, principalmente de São Paulo e Rio de Janeiro. Artistas do interior, para penetrar em São Paulo, como é difícil!"

Sandoval: O Núcleo está com quantos anos?
Paulo: Os participantes do Núcleo, em 96, foram convidados para uma exposição. Depois, houve outra no Centro de Convivência Cultural de Campinas, cujo nome era Amuletos. Até aí o Núcleo não existia oficialmente. Em 98, Americana; em 99, Campinas. Então, em 2000, eu quis oficializar isso, graças à ajuda da Celina. O Núcleo Olho Latino oficializado tem a ver com aqueles artistas que continuaram comigo. Os que faziam o meu curso, e alguns convidados à parte, que entraram diretamente no Núcleo, aceitando a minha proposta. Inicialmente foram convidados mais de vinte artistas, para que se mantivesse essa formação durante cinco anos. Assim, vamos consolidando-o. Os artistas do Núcleo Olho Latino são capazes de realizar um trabalho digno de ser apresentado em qualquer lugar do país ou do mundo.

Paulo Cheida Sans
Dominantes e Dominados
Linogravura
49,5 x 81 cm - 1995

Zago: Com isso tudo, você sentiu a necessidade de criar um Museu?
Paulo: Sim, no momento em que sentimos que não sabíamos como fazer para doar as obras do acervo; como doar isso, sem dor no coração. Não é por causa do dinheiro, mas não quero que suma aquilo. Não quero que um acervo, criado com tanto esforço, perca-se facilmente no meio das obras de uma outra instituição, entende? Dificilmente dão valor para trabalho em papel e para a área da gravura. E o acervo que tenho é praticamente de gravuras.

Sandoval: Por que fundar o Museu Olho Latino?
Paulo: A minha participação artística é ampla e já faz tempo que venho me dedicando a curadorias, a escrever textos, a coordenar exposições, além de continuar a minha produção artística. Vejo unidade no que faço e também identidade. Existe em mim a marca Olho Latino, quer seja nas minhas obras, quer seja no que organizo. No entanto, para que o meu trabalho não se perca em instituições diversas e sem vínculo uma com a outra, a necessidade nomear aquilo que organizo e realizo tornou-se uma necessidade primordial. O Museu Olho Latino nasce para registrar o meu trabalho como produtor e realizador no contexto da arte. Só que não estou sozinho aí, conto com vários anos de carreira e, conseqüentemente, vários vínculos. Um dos mais fortes, e que serviu de base para nascer o museu é o acervo particular de gravura que tenho, juntamente com a Celina. A maioria das obras do acervo é de gravura. Como venho organizando mostras internacionais e nacionais de gravura há mais de 15 anos, fui trocando obras com artistas - muitas vezes com uma gravura minha em troca de outra (como já mencionei). Também ganhei muitas e adquiri algumas. Inicialmente, minha esposa e eu doamos em torno de 400 gravuras de artistas de vários paises para a fundação oficial do Museu. Contudo, estamos realizando o registro e catalogação de cerca de mais 600 obras, que logo estarão sendo expostas. São obras que representam a produção da gravura atual. Outro aspecto que me levou a fundar o Museu é a existência do Núcleo de Arte Contemporânea Olho Latino, que conta com a participação de aproximadamente 20 artistas. Acredito que eles farão um trabalho primoroso com o tempo e que serão considerados no meio artístico. Temos artistas de várias cidades, como Campinas, Atibaia, Paulínia, Artur Nogueira, Itu e Inconfidentes (MG). Outro aspecto ainda é manter a publicação da revista Olho Latino e produzir pequenos livros sobre a área artística. Esses são os motivos principais que conduzem a um só: o Museu Olho Latino. Ele está nascendo para valorizar os artistas do interior, que necessitam de uma projeção maior, além de projetar a arte da gravura de modo geral e, também, refletir teoricamente o contexto da arte contemporânea. Diria que o Museu Olho Latino não procura seguir os passos ditados pela mídia e pelas grandes instituições culturais.

Zago: As exposições continuam?
Paulo: Sim, o acervo tem percorrido as capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. Chegou a acontecer tudo no mesmo ano, em 2002. Acervo considerável, caso contrário o Conjunto Cultural da Caixa não encararia tal dinâmica de exposições. Mantemos no espaço Garatuja, em Atibaia, SP, uma Mostra Internacional, que já está na terceira edição. Nossa Bienal Nacional de Gravura está entrando no segundo ano e acontecerá no SESC de Campinas, em setembro. Contaremos com nomes de grandes artistas como Antônio Henrique Amaral e Luís Áquila, além de muitos outros, já confirmados. A latino-americana, a Grabados e Gravuras, foi transformada em Bienal, que acontecerá ainda neste ano. A Bienal Internacional de Gravura ocorre nos anos pares. E teremos sua terceira edição em 2004. A 2 ª Bienal do Esquisito, prevista para acontecer em outubro em Campinas, prenuncia ser um importantíssimo evento, assim como aconteceu da primeira vez. O tema desta bienal A emenda da churrasqueira,é instigante, e certamente os expositores do Núcleo Olho Latino saberão decifrá-lo.


Zago: Há um local previsto para o Museu Olho Latino?
Paulo: O Museu de Arte Contemporânea Olho Latino, embora sem um local fixo para exposições, é hoje uma instituição que se consolida graças aos grandes eventos que fazemos. Ele está nascendo porque a atividade que venho desenvolvendo já merece atenção. Merece ser vista e ultrapassa em muito o que em geral as galerias desenvolvem.

Paulo Cheida Sans
O Dedo do Poder
Linogravura
30,5 x 25 cm - 1994

Zago: Fixo, em Campinas?
Paulo: A princípio é em Campinas. Aqui é que foi organizado nosso acervo. O Museu representará artistas de Campinas e do interior. Os eventos considerados oficiais, as bienais de gravura, nacionais, latinas, internacionais, e a Bienal do Esquisito, no papel de arte de vanguarda continuarão. Por enquanto, estamos nascendo modestamente. Não é o caso de se abrir inscrição, como eu gostaria que acontecesse com a Bienal do Esquisito, acolhendo obras de artistas do Brasil todo e até de outros países. Ainda não há condições para isso.

Sandoval: Como você vê o Museu Olho Latino para o futuro?
Paulo: No momento, apenas estamos iniciando. Acredito que a implantação do Museu deva demorar aproximadamente cinco anos. Considero implantação uma série de atividades que registrem a identidade do Museu para o público. Após esse tempo, estaremos na fase da consolidação do referido Museu. Penso que deve demorar aproximadamente mais cinco anos. Quero dizer, a manutenção de uma sede com exposições, com atividades várias que dignifiquem a arte, e com um Centro de Memória abrangente. Depois disso, o Museu estará de vez qualificado para representar a arte da gravura, para representar a arte da região e para servir como pólo para pesquisas acadêmicas sobre a arte contemporânea.

Sandoval: E o seu cotidiano de artista?
Paulo: Faço desenho, pintura e gravura, enfim, conforme o tempo que me sobra, produzo. Participo bastante de exposições. Participei das principais bienais de gravura no mundo, tais como: Premio Internacional de Grabado Máximo Ramos em Ferrol, Espanha, da Bienal Internacional em Gabrovo, Bulgária, da Bienal na Yugoslávia, da Bienal em Eslovênia, da Bienal de San Juan del Grabado Latinoamericano y del Caribe, San Juan, Porto Rico, também a do Japão. Enfim, participei aproximadamente de 80 exposições somente no exterior, e recebi 4 prêmios. No Brasil, expus em importantes mostras, como o Panorama do MAM, São Paulo, de Salões em Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e muito mais. Recebi 36 prêmios em Salões do País. Isso de expor aqui e acolá virou uma constante, nunca parou. Estou com obras em importantes acervos como o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, o Museu de Arte de Brasília, o Museu de Gravura em Curitiba e assim por diante, em vários países. Sou membro satélite do importante Núcleo de Gravura do Rio Grande do Sul.

Zago: Como você vê o mercado de arte como artista?
Paulo: São coisas distintas. Uma se relaciona com a outra. O mercado vive da obra do artista, mas os que lidam com a obra do artista, intermediando-a para colecionadores, têm outra sensibilidade, diferente da do artista. Eles usam mais a razão. Mas, sem os críticos, os marchands, sem os galeristas, os curadores, como o artista vai aparecer? O artista tem que saber com quem lida. Agora, de um lado, o seu produto não tem preço. Na hora da criação surge algo que é fruto da necessidade de expressão, não pela exigência do mercado...

Zago: Se você pretendesse uma carreira artística convencional, passando por galerias, não seria esse o trajeto que você faria....
Paulo: Não seria esse o trajeto. Se eu quisesse fazer o meu nome apenas, não teria de ficar trabalhando tanto e favorecendo o reconhecimento de outros artistas. Teria que pensar mais na minha carreira como artista. Durante o tempo em que faço o intercâmbio, e praticamente isso me ocupa um tempão, seja recebendo cartas, ou montando gravuras, ou preparando obras para despachar, teria de eliminar toda essa mão-de-obra, ser só o artista Paulo Cheida. Não consigo deixar esse outro lado pela satisfação que me dá. Ver trabalhos, como o do Gimenes Sallas, por exemplo, artista fantástico e pouco conhecido. Fazer uma exposição desse artista é um prazer muito grande; é um lado meu que cultivo. Agora, sinto pena de não poder expandir, como gostaria, essa intenção de descobrir e valorizar quem merece. Minha atuação é modesta. Levar o artista a penetrar no mercado de arte... Gostaria de contribuir para isso, mas não tenho toda essa força, pois não depende só de mim.

Sandoval: Seu sonho atual...
Paulo: Meu sonho mesmo, o atual, é formalizar o Museu Olho Latino. Esse é o meu sonho, é o que estou procurando fazer.

Sandoval: E o futuro?
Paulo: Se fosse escolher, pelo que venho fazendo, não teria como separar uma coisa da outra, mas no futuro, em função da idade, acredito que vou preferir um certo isolamento. Gostaria de, no futuro, pintar mais. Eu trocaria, esse tempo como professor/curador/autor para me dedicar à pintura.

(No final da entrevista cantamos a música da caveira, de sua performance na Bienal do Esquisito: Era uma vez duas caveiras que se amavam / E à meia noite se encontravam...)

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Entrevista publicada originalmente na Revista Olhar - Ano V - Número 9 - Ago-Dez de 2003 (pág. 146 a pág. 153) / Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

* Márcio Zago é artista plástico, diretor da Garatuja - Oficinas de Arte (Atibaia).
Euclides Sandoval é artista plástico, jornalista e professor universitário