Da Participação do Espectador ou Sobre o Novo Jogo

Artur Freitas *

        Ao que parece, a partir de um determinado ponto da história das artes visuais alguns artistas começaram a perceber que o mito de Narciso, outrora tão pertinente e constante, havia se afastado gradativamente do conceito tradicional de obra de arte. O ego dilatado do artista parecia ter escapado sorrateiramente, escorrido pelos dedos impotentes e desprevenidos dos fazedores de arte. Quando alguém se deu conta, já era tarde: a palavra “saída” sempre presente na última curva do túnel da criação não estava mais lá. Havia somente uma intimação para a reflexão. Os que pararam primeiro para pensar perceberam logo que o simples domínio do métier não dava pano suficiente para cobrir a fenda estética que surgira (e percebia-se logo a urgência de passar ou saltar sobre tal fenda, pois ela aumentava a olhos vistos, anunciando o terremoto). A auto-suficiência do artista havia sido atingida no cerne, em sua essência nuclear. A relação do construtor com seu objeto, e por sua vez a relação deste objeto com o seu provável fruidor dava mostras de inconteste fraqueza. E essa relação, antes, era uma das poucas certezas que, conquistadas no seio humanista do renascimento, ainda se mantinham firmes, indiscutíveis e aparentemente cristalinas: era a única regra do jogo estético respeitada por todos, era mesmo a regra que caracterizava propriamente o jogo, que lhe conferia individualidade, que o tornava fenômeno. Mas, ainda como conseqüência desta regra, restava ao artista a tarefa de criar novas funções para os jogadores assim como restava a ele também escolher entre as tarefas disponíveis, quais seriam aproveitadas e quais deveriam ser definitivamente enterradas. Daí pode-se começar a perceber a dificuldade da empreitada. Como esperar que o principal beneficiado com o jogo tradicional possa, ele mesmo, deslocar sua função particular (nitidamente impositiva e vertical) em favor de outros participantes? Era esperar para ver se o artista daria conscientemente o maior dos passos: descer do trono, desmascarar a obra, ouvir o ritmo da nova música e tirar o espectador para dançar. Resumindo: era esperar que o artista abrisse mão de seu status quo mais íntimo, que abdicasse ao título ganho já nas primeiras olimpíadas filosóficas da Grécia antiga: o título de criador.

Foto: Reprodução

Oiticica
Parangolé
Tecidos
150 x 110 x 20 cm - 1964



       
Evidentemente, essa nova ordem (ou falta dela, se quisermos) não se resumia apenas ao campo das artes. Antes, era um índice de uma situação geral de toda e qualquer atividade humana, do ideal humano, do próprio homem. Aquele homem típico de meados do século XIX em diante, prepotente em seu domínio da natureza, da realidade, das relações sócio-políticas, aquele homem confiante, nacionalista, industrializado e liberal, moderno mesmo, porém incapaz de vislumbrar os abalos sísmicos provocados pelos excessos de sua desconsideração social, indicados que foram tais excessos pelos pensadores germânicos.

        Só sobrava, então, o choque. Quando a Primeira Guerra Mundial começou, o que restava da confiança do homem comum do XIX esvaiu ralo abaixo. A loucura humana reacendia aquele comportamento coletivo tão historicamente colecionável: a violência, a revolta, a revolução, a insurreição, em suma, a guerra. E é desse contexto pavoroso que surgem os primeiros artistas europeus que realmente se dão conta da ineficácia do – ainda válido – jogo estético tradicional. Eles, que se autodenominaram dadaístas, viam nas regras específicas desse jogo um exemplo prático de um produto da sociedade doentia contaminada pela burguesia e por tudo que pudesse a ela se vincular. O olhar dadaísta desprezava inclusive todas as vanguardas modernas imediatamente anteriores ao dada (especialmente o cubismo), justamente por não ver em seus atos esteticamente “revolucionários” nenhuma resposta objetiva em relação à situação artista-obra-espectador, aonde enxergava no reagente ”espectador” um frívolo e gordo burguês sentado em sua poltrona macia, e naturalmente estendia o julgamento ao agente “artista” complacente com toda esta situação. Do dadá surgiu o primeiro deslocamento do ego narcíseo do artista. O seu comportamento non sens, entre outras coisas, serviu de delator da falência do jogo estético predominante. O dadaísta foi o coveiro das regras tradicionais, o abolicionista da noção vulgar de objeto de arte como matéria transcendente autorizada a transportar a genialidade ímpar do autor para o estanque e criativamente incapaz espectador.

        Apesar disso, a situação não se resolvia apenas no grande salto dado por sobre a fenda, que havia sido a ação acusatória e destruidora do jogo estético tradicional: a relação vertical rompida não fora substituída por outra relação estética de qualquer espécie. A visão de mundo dadaísta era excessivamente negativa, de antiarte, de antiburguesia, excessivamente imersa no irracional da Guerra para que o dada pudesse construir as novas regras de um novo jogo. E também, na medida que o movimento ameaçava ganhar projeção internacional na França e na Alemanha, na medida em que Tristan Tzara e sua turma passavam a ser conhecidos fora de Zurique, o dada caía na própria armadilha fadado à autodestruição: o simples discurso de “construção”, de pedido de ordem ou de qualquer imposição poética de lógica significava o fim da epopéia revolucionária dadá. Mesmo que os integrantes dadaístas soubessem que a perpétua subversão era inviável por que inconsistente e mesmo juvenil, estava proibido ao dadaísmo fornecer qualquer fio de Ariadne positivista que pudesse indicar a placa de “saída”, sob pena de descaracterização ideológica (já que a própria negatividade niilista procede de um ato ideológico intrínseco).

        Desta maneira, ao dadaísmo coube o mérito de demonstrar e ilustrar a crise estética moderna, e de uma maneira mais particular e aleatória, a crise humana mais ampla. Mas, definitivamente, não ficou a seu cargo a reconstrução. E, ao que parece, a elaboração de novas regras para o jogo estético só começou a ser esboçada fora do terreno estéril das vanguardas históricas, no além-moderno (se é que me faço entender), apesar de algumas concretas tentativas. Ainda como resposta à mesma crise (ou seja, como uma das “concretas tentativas”), outro caminho político-cultural (que não o niilismo e o dadaísmo) se desenhava na Europa oriental: a Revolução Russa e seu aproximado correspondente estético bolchevique, o construtivismo. Ao objetivo vermelho revolucionário marxista-leninista juntava-se a utopia funcionalista construtiva. Aniquilamento de um mundo podre e sua substituição pelo Éden teórico de Marx através da revolução real, da guerra . A primeira parte, ao menos na Rússia czarista, funcionou. Nada parecia impedir os planos de Lênin e de muitos de uma revolução geral, internacional, a construção do novo homem e (porque não?), do novo jogo estético. O desejo positivista de construção, o funcionalismo ligado à arquitetura e ao design, o apoio à indústria e à era da ciência faziam do construtivismo russo o mais forte candidato à reformulação da nova arte. A previsão estética feita por Hegel sobre o “fim da arte” parecia estar se concretizando enfim: a “arte” nascente sob os auspícios da tecnologia e da esquerda prometia pôr fim ao sistema da “arte como produto de consumo capitalista” e inaugurar uma nova idade da sensibilidade humana, aonde a “arte” desapareceria porque estaria pululando por toda parte, mesclada com a própria vida em sociedade, mais ou menos como Mondrian também imaginava que poderia um dia acontecer. Mas nada disso ocorreu. O mesmíssimo problema que nocauteou as ideologias políticas da esquerda radical permeou a vanguarda soviética: depois de feita a revolução, de derrubado o inimigo, percebeu-se que o procedimento belicoso de levante não mantinha governo algum de pé; era necessário um projeto de continuidade. Assim como a Rússia socialista soçobrou em suas próprias utopias diante do governo desumano de Stalin, o construtivismo percebeu-se – apesar da vontade – plenamente incapaz de formular as novas regras do jogo estético.

        A fragilidade da relação entre artista criador e espectador passivo sabidamente já havia sido denunciada e reconhecida internacionalmente, mas somente após um dado instante, situado nas décadas seguintes a Segunda Guerra (num momento em que não era certamente apropriado falar mais em moderno) os primeiros esforços efetivos na tentativa consciente de uma nova disposição dos elementos significantes da obra de arte finalmente despontaram. Não se trata aqui de resumir a (r)evolução da arte durante o século XX a um fenômeno histórico-estético que natural e cronologicamente possa apontar às mudanças das regras elementares do jogo estético tradicional, mas antes, de perceber um dado positivo e até certo ponto mensurável que pode ser significativo para uma melhor compreensão da arte como um aspecto do conhecimento[1]. Por certo, os caminhos percorridos pela arte durante o entreguerras foram caminhos de transição ou mesmo de ratificação de certas dúvidas. E foi na arte desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial, especialmente nos anos 50 e 60, que por todos os lados vieram à luz respostas poéticas a desafios semelhantes. Artistas como Ives Klein, Cage, Kaprow, Manzoni, Beuys, entre outros tantos, conseguiram, já em outro ambiente cultural, sugerir algumas das novas regras cuja necessidade de formulação o dadaísmo e até mesmo o futurismo já denunciavam, sem, no entanto fornece-las.

        Hélio Oiticica, nesse sentido, foi o primeiro e talvez um dos mais lúcidos e sensíveis artistas brasileiros (e mesmo internacionais). Seu alcance poético o levou a criar uma nova partida, um outro jogo, com um novo preceituário que precisou ser aprendido desde o bê-á-bá balbuciante, que no princípio nem ele mesmo dominava. Talvez a grande vantagem de Oiticica dentro desta questão se encontre em sua própria formação particular. Apesar do artista ter dados os primeiros passos no interior da abstração concretista (e conseqüentemente ter se afundado até as narinas no mar bravio da problemática típica do modernismo: a representação) ele conseguiu coordenar nessa época de amadurecimento dois componentes vitais para o entendimento de seus princípios futuros: o anarquismo libertador e o gesto positivo de construção. A falta de controle racional cerceador, tão cara aos dadaístas, lhe chegou através da própria educação familiar anarquista. E o rigor positivo e apolíneo responde ao momento típico da década de 50 brasileira, com a industrialização, a crítica ao nacionalismo estético, a necessidade de ordenação e o início do concretismo.

        Logo na primeira arrancada dos anos 50, a arte concreta tornou-se coqueluche entre nós, verdadeira epidemia poética. Dentro de um ecossistema intelectual favorável, o concretismo do suiço Max Bill e da Escola Superior da Forma (a Escola de Ulm, espécie de prolongamento da Bauhaus) forneceu seus frutos já maduros ao Brasil (particularmente – como já havia tornado-se praxe – os frutos foram colhidos pelos longos braços do eixo Rio-São Paulo). As teorias de Van Doesburg sobre a arte concreta como o limite lógico de Mondrian, Malevich, Pevsner e Lissitzky chegavam com toda a força, ameaçando o sistema cultural vigente, fornecendo massa crítica objetiva para o duelo contra o nacionalismo “estético” dominante de Portinari e Di Cavalcanti. Princípios audaciosos e inovadores como os de Ulm, De Stijl, Cercle et Carré, Bauhaus, Art Concret e Abstração-Criação eram rapidamente assimilados e postos em ação pelos nossos artistas e intelectuais mais conseqüentes, logo impregnando o próprio sistema cultural nacional: o sucesso de Max Bill e da abstração geométrica em geral, logo na primeira Bienal de São Paulo, além da conhecida defesa feita por Sir Herbert Read em favor de Volpi e em detrimento de Di Cavalcanti na segunda Bienal servia de exemplo prático disso. O moderno chegava, enfim, ao Brasil.

        Mas, tal qual criança deslumbrada com novo brinquedo, nós não lembramos em instante algum de conferimos a validade ou a garantia de fábrica do nosso magnífico produto importado made in Europa. E ele, infelizmente, tinha defeitos. Aliás, dois probleminhas rasteiros que se fundiam num só: vida breve e garantia vencida. O dedo em riste concreto apontava para o campo infecundo do racionalismo matemático e demasiadamente antiexpressivo. E, apesar da pretensão geométrica e científica, houve aí um grave erro de cálculo. Ao concretismo faltou discernimento para perceber no dadaísmo e no surrealismo (os quais abominava o conteúdo metafísico, cunhando-os de “românticos”, e “descendentes do decadente expressionismo pré-cubista") que o dedo em riste de tais movimentos estava nitidamente denunciando o jogo estético tradicional. Naturalmente, sozinho, o dada não apontava para lugar algum, mas cumpria bem o seu papel de alcagüete estético. Enquanto que, por sua vez, o concretismo que se dava ares de supremacia, na verdade apenas tentava se mover (mergulhado que estava) no lodo cultural capitalista. Como traça que passeia num jornal, ele não lia os textos, apenas se deliciava com o papel.

        Como reação à “estreiteza” de princípios poéticos dos concretos (especialmente os paulistanos do Grupo Ruptura), Ferreira Gullar, desligando-se de Pignatari e dos irmãos Campos, publica em 1959, o Manifesto Neoconcreto[2], um ataque frontal, público e - considerando as circunstâncias - bem consistente. O Gullar do Manifesto... já fornecia a chave para o entendimento do Gullar da Argumentação Contra a Morte da Arte, publicada anos depois e pouco compreendida: uma espécie de poeira concreta depositada num solo romântico com suave apego à expressão poeticamente dominada. Já havia implícita na proposta do Manifesto... uma antipatia premonitória ao conceitual como gesto operativo, mas mesmo assim, Gullar (junto com Mário Pedrosa) ajudou a criar artistas como Oiticica e Lygia Clark, que iriam, em certas situações, poeticamente além dos dois grandes teóricos. Dentro do território nacional, tanto Oiticica quanto Clark seriam os primeiros a ultrapassar a fenda criada no comportamento moderno, impulsionados por todo um meio que os apoiaria até o fim, mas que talvez não estivesse apto a lidar com as regras do novo jogo. Mário Pedrosa, por exemplo, nosso principal e mais ativo crítico de arte da época, sabidamente serviu de influência determinante para Oiticica completar a passagem para uma poética metafísica individual que transcenderia a pura modernidade, mas, enquanto peça fundamental do quebra-cabeça moderno, Pedrosa não conseguiu acompanhar, de corpo todo, a penosa travessia do artista.

        Paralelo aos happenings de Cage e as apropriações de Klein, Oiticica chega a situações análogas na fundação da nova linguagem estética mundial. Seus Parangolés são síntese e sintoma da caminhada libertária e construtiva do artista. Suas idéias, permeadas de Nietzsche e Merleau-Ponty já podem realmente ser postas à mesa filosófica de Susanne Langer, como imaginava Frederico Morais[3]. Oiticica sugere uma “saída” operacional real, fazendo uso de sua herança concreta, oferecendo o nivelamento relacional entre artista e espectador. A efetiva tentativa da horizontalização desta relação fornece uma resposta ao beco estético acusado pelos ready-mades de Duchamp. Não se trata de ir além, de propriamente uma “ruptura”, mas de uma seqüência necessária, elementar, estrutural. Da negatividade de Duchamp nasce a construção de Oiticica.

        Oiticica apropria-se das latas de óleo queimando que iluminavam as estradas noturnas. A origem do ato se pode descobrir no urinol, no porta-garrafas de Duchamp, em seus objetos manufaturados e escolhidos “desinteressadamente” (como dissimularia o próprio artista tentando explicar a apropriação). Porém, o ato ético de Duchamp comporta uma crítica, um desgosto, uma aflição, antes mesmo de darem-lhe externa e posteriormente feições estéticas. Seus ready-made’s são sinônimos significantes da mudança, mas não são a mudança em si. Os Núcleos e os Bólides de Oiticica sem dúvida são devedores dos ready-made’s, mas seus Parangolés, sua Sala de Sinuca, já sugerem mais aproximações com seus contemporâneos (como Beuys e Kaprow) que com Duchamp. Nessas proposições poéticas, o próprio conceito tradicional de obra se evapora no meio do caminho, o controle do artista pela obra também se mistura com o ar abundante das novas idéias e o espectador ganha um ingresso lúdico e ao mesmo tempo trágico no âmbito do novo jogo estético: é certo que nem artista e nem espectador sabem bem como são as novas regras, nem por certo conhecem a estrutura específica do novo jogo, mas reconhecem inconscientemente que, uma vez postos no processo, basta ser.

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Texto publicado originalmente na revista A Fonte - www.geocities.com/a_fonte_2000/

* Editor da revista eletrônica A Fonte. Pesquisador em história da arte. Professor do Curso de Pós-Graduação em História da Arte do Século XX, EMBAP. Doutorando em história cultural pela UFPR com tese sobre as vanguardas brasileiras dos anos 60 e 70. Bolsista pela Capes. Mestre em história, também com bolsa Capes. Graduado em Arte pela UFPR. Autor de Arte e contestação: uma interpretação relacional das artes plásticas nos anos de chumbo (1968-1973).