ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO *

Paula Valéria Andrade**

        Arthur Bispo do Rosário nasceu em 16 de Março de 1911, na cidade de Japaratuba, interior do Estado de Sergipe. Seus pais, também sergipanos, trazem o patronímico dos negros escravos que receberam apelativos religiosos da congregação que os reunia, neste caso, a do Rosário.

        Arthur viveu muito a vida antes de ingressar na Colônia Juliano Moreira - um hospital para doentes mentais. Foi marinheiro, viajou muito, viu muitas cores, formas, seqüências, classificações e ordenações de fatos e coisas referentes ao seu universo normativo e cumulativo, mais tarde refletido em seu trabalho plástico - conceitual, criado à beira de sua loucura. Também foi porteiro, guarda-costas e pugilista, tendo chegado a campeão latino-americano da categoria peso-leve.

        Nos anos 60, já na Colônia, Bispo começa a expressar-se desmanchando os uniformes (uni-formes, uma só forma de enquadrar os diferentes) dos internos e isolando os fios azuis - nostalgia do azul do mar de um marinheiro náufrago - e bordá-los em seguida nos lençóis para fazer deles os seus estandartes, princípio sinalizador de suas ocupações em instalações que trafegam entre os limites do espaço físico e do imaginário de seu espaço psicológico. Os estandartes são uma escolha significativa, alegóricos elementos remanescentes de uma cultura do carnaval, das procissões e das manifestações de entrega total ao mito da divindade.

Foto: Reprodução
Miniaturas / Tecido, madeira e plástico
Museu de Imagem do Inconsciente

        As enumerações, classificações, qualificações e quantificações, conotam o gesto cartorial do elemento repetitivo como fixação e sucessão homogênea de muitos "eus bipartidos": pela articulação de peças diferentes no uso ou analógicas, às vezes mero depósito, as vezes mero ensaio-e-erro na composição. Seu mundo é de feiras livres e sobras: latas, garrafas, plásticos de embalagens-lixo, barro, tecidos e restos.

        Materiais estridentes em suas cores e texturas, interagindo no espaço com o uso de uma dobradura, um bordado, um entrelaçamento, uma forma disforme de transformar a proposta. Condensação de carnavais, garrafas de plástico cheias de confetes aderem a marchas que perderam os acentos marciais e animam bailes públicos. Seu movimento é o "fluxus sem nexus". A simples emanação do fluir.

        Bispo traz à tona uma polêmica discussão sobre a arte brasileira. A análise de sua produção traz o que sempre esteve ausente do circuito artístico brasileiro: a arte sem nenhuma condescendência do povo, distante do artesanato e rigorosamente afim do circuito restrito dos criadores. Bispo é dos que nunca vão à museus, galerias, bienais, semelhante à maioria da população do país. Seu trabalho tem o mesmo instinto paleolítico da caverna de Chauvet. Mas acima de tudo é despretencioso, ricamente detalhado, belo e alegre nas composições e precursor das instalações aqui no Brasil. Seu trabalho nada tem a ver com artbrut. Ele sai do suporte convencional e procura criar o espaço, a procura de material para fazer a obra, no que chamamos hoje de instalações. Sapatos, congas, havaianas, sandálias de borracha, chinelos, classificados em fileiras, denotam a acumulação, confessam o poder aquisitivo mínimo, classificam por números grupos e castas causando no contemporâneo o mesmo impacto dos sapatos camponeses de Van Gogh e sendo o precursor deste foco para os artistas da nova geração que abordam o tema, como Hélio Melo (exposição no ArteCidade 1997, nas ruínas Matarazzo).

Foto: Reprodução
Manto da Apresentação
Técnica mista
118. 5 x 141 x 20 cm

        Seu processo artístico acaba por ter uma verossimilhança em formas freqüentemente assimiladas à busca de Marcel Duchamp. O mais curioso é a não-formação da educação formal do artista, a cultura espontânea inerente, expressa, escorrendo pelos vãos das mãos "fazedoiras". A grande questão polêmica é o ser ou não ser artista, que pensa o seu processo de imprimir e se colocar, se questiona criticamente no foco do que vem a ser o seu trabalho e a repercursão disto.

        Bispo simplesmente faz. Seu resultado é belo. Sua estética é um puzzle de fragmentos poéticos do cotidiano banalizado. Sua intenção é divina. Bispo é divino, apesar de humano. Morreu em 1989, aos 78 anos, de infarto do miocárdio e arterioesclerose na enfermaria da Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.

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"Os doentes mentais são como os beija-flores. Nunca pousam.


Estão sempre a dois metros do chão"


Bispo do Rosário

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        Sua mandala tropical distancia-se do padrão Dunlop que tanto impressiona Marcel Duchamp, na época em que arte moderna confudiu-se com revolução industrial. Bispo aglutina nomes, nomes de coisas e pessoas, e os borda em faixas, mantos, estandartes, lençóis, enfim, uma espécie de comunicação pré-verbal antepredicativa que o faz tecer uma tapeçaria cartográfica do seu universo poético e os faz ressoar picturalmente. O objeto e a palavra amalgamados na tessitura da forma.

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* Publicado originalmente em http://officinadopensamento.com.br/arquivos/visuais/artigos/arthur_bispo_do_rosario_paula_valeria.htm

** Paula Valéria Andrade nasceu carioca, viveu em São Paulo e atua como poeta, escritora, webcolunista(*) e designer por 16 anos. Publicou "IriS digiTaL Poesy(a)" 2005 Editora Escrituras; seis livros infantis com prêmios Jabuti, APCA, FNLIJ, White Ravens ;`A Arte em Todos os Sentidos", sobre arte & tecnologia multimedia, 2000 Editora do Brasil e participou de algumas antologias latinoamericanas. Reside em San Francisco- Califórnia- há três anos trabalhando como designer teatral. (*) Teatro: www.blocosonline.com.br e literatura: www.cronopios.com.br.
· contato : paulavaleriandrade@hotmail.com