PERSONAGEM DOS ESPAÇOS

Euclides Sandoval*

        No Pato com Batom, suplemento do Café Expresso nº 5, São Paulo, publicação do Eduardo de Barros e Almeida (o Barrox), em 1999, escrevi o texto abaixo, que revejo, com inserções e alguma alteração. "Artaud a Cavalo", de Claudionor Picarelli, e uma conversa com o escritor Carlos Pessoa Rosa, serviram de inspiração.

        Ando pela sala, enquanto os alunos não vêm. Refletido, na classe há espelhos. Sensação de ser outro, me alio às forças de inércia. Olhos, o andar, vontade de sorrir. Alunos chegando. Consciência, folha em branco. Das imagens, às coisas duplicadas pela própria sombra. Sensação de que me dirijo a espectros. Cavaleiro verde do conto medieval, pedindo para que me cortem a cabeça. Dramatizei o mito com meus alunos. Poeira resseca as gargantas. Penso no que pensam ou sentem. Nem dá para falar com esse louco a investir contra tudo. "Tudo" são as instituições. O aluno ainda pensando o que eu penso que ele pensa. O simulacro de uma aura apodrecida. Minha cabeça, cheia de deuses. Fluência que me assusta, incontida. O patético, dos juros, Sistema, notas, provas, escapadas, música tecno, braços em movimento no auditório, violência no futebol, paredes nuas pichadas, grosseria ruidosa, gritos nada a ver com Artaud, o country importado, "estar com" sem responsabilidade. Quem prestará tributo? Lá de cima se tira a força dos debaixo. O virtual, fuga para desertos. Cabeças sem reação. Não entendo o que você fala. Nas vivências, fibras do corpo sem palavras para o retorno. O vazio importa. Moçada na preterminação, puxada pelo "você fará", de Nietzsche (Assim falava Zaratustra). Ainda camelos, devendo para leões que matam o dragão do "você fará". O coto dos pescoços, cabeças decepadas pelo Sistema, o Grande Chefe Global. Cenas estranhas nas aulas, quando se põe ovo em pé, sem gesto institucional de sacanagem. O fundo, o vazio, o negativo - o que importa. Sem o quê, não se tem a figura. Ver assim é não ver... para ver. Virtual, mais real que bonecos de lama. Preito à sucata. Para as traças, a essência da existência. O aqui e o agora, concretos, a corrente sangüínea. Objeto e imagem, tão coisas. Eu, Artaud. Eu, que quase tive meningite aos 14 anos, convulsão aos trinta, a nitidez surgindo por conselho, ao me recostar num banco. Lucidez na calma, quando o "self" fala. Arrepio ou bocejo, o "self" vai falar. Depois do espectro convulsivo, me dei conta do excesso de "você fará". Como um personagem de Antonioni, entendi que tragediazinhas aclaram as coisas. Usei Trinuride, sem me tornar dependente, embora me divertisse ao me ver despertada a intuição mandálica. Servir, não ser servido. Hoje, quando a máquina pode instalar-se no corpo, perigosa a monitoração. De fora para dentro... Palmas! Quanto de reprodutivo idiota, até que o personagem de "Blow-up" brinca com a bolinha de tênis invisível. De que adiante esclarecer um crime? É sempre desvendar para quem? Qualquer manipulação, uso das mãos abrangentes, pode fazer com que se perceba o que não se vê. Quando a escola será tão sensorial e polivalente quanto um cabaré literário? Dançar juntos, inclusos, problemas não são senão corpo. Massacre comercial estourando tímpanos. Triste a dependência química ou cultural. Aquela cultura de baixa informação que só agita. Mas há uma saudável loucura. Cavalo e cavaleiro, um só. Pés na lama, cabeça para as estrelas de Van Gogh. Tempo é imagem, sua duração eterna. Pela imaginação ativa (Jung) habito quadros e espaços. Eu e o cavalo somos Artaud. Por vezes calmo, não vociferante, ouço, lágrimas deslizam pela afinação. Separar cabeças de corpos, crime hediondo. Professor se quer real. O querer, posterior ao existir. Meu esbravejar em aulas é quando Artaud sou eu, perfura e corta modelos, imagens-virtuais, simulacros com suas dores e estúpidas esperanças. Nossa época. Marasmo num turbilhão. Deserto com camelos que não conseguem se transformar em leões autodeterminados. Teatro, terapia para a inércia e confusão. Sensualiza o espírito, espiritualizando o corpo. O homem não é social. Só a duras penas se torna solidário e amoroso. Imaginação e anarquia. Maneira de enfrentar a reificação das instituições. Espetáculo como ação ritualística, celebração do homem como devir. O corpo, motor sensual, desperta o gosto. A contingência humana em seu devido lugar. Sincronicidade é o além da folha seca que não cai. Como professor fui escolhido por Artaud para detonar bombas verbais, face à empáfia da normalidade. Monto um cavalo verde em paisagem de trigo e abutres. Enterro o que se desgastou. Revolução social, política e existencial. Contra as cisões do sujeito e do objeto. Cobra não se mata, deve ser devolvida ao seu hábitat. Abaixo os ídolos do que for. Estar desperto no sonho. Possível conduzi-lo. A carne, um drama. Inscrito em cada fibra do corpo e da mente. Pode-se reencantar o mundo. A aula recomeça com panfletos, ataques, diatribes e manifestos... Recursos como lançar-se à morte e viver. O humano sem disfarces. Criação, devir... Fala Artaud!

Foto: Reprodução

Antonin Artaud

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* Euclides Sandoval é artista plástico, jornalista e professor universitário